A presunção de legalidade dos actos administrativos " Um conceito ultrapassado

I " A presunção de legalidade dos actos administrativos.
II " Um conceito no domínio do contra legem.
III " O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 22 de Março de 2004, tirado no processo nº 01006/03.
IV " Breve trilhar pela demais jurisprudência.
V " O nosso comentário crítico.

O princípio que é alvo do presente escrito (o da presunção de legalidade dos actos administrativos) é um daqueles que tínhamos por completamente ultrapassados no nosso ordenamento jurídico. Com alguma preocupação, para não dizer com profunda tristeza, verificamos que assim não é e prova de tal é o acórdão que consta do sumário inicial e ao qual abaixo regressaremos.

Tendo em conta esta situação com a qual fomos confrontados entendemos ser de marcar a nossa posição, quanto mais não seja para sermos mais uma voz que se levanta contra um entendimento que, nos tempos que correm, temos por completamente ilegal.

Assim e em linhas gerais o princípio da presunção de legalidade dos actos administrativos traduz-se numa concepção segundo a qual este tipo de actos como que beneficiam de uma auréola de legalidade que os protege incumbindo ao contribuinte lesado pelos mesmos fazer prova da ilegalidade dos ditos. Ou seja, é uma concepção que assenta no pressuposto de que é ao contribuinte que incumbe o ónus da prova de que qualquer conduta, positiva e agressiva, da administração sobre si se apresenta desconforme com a lei.

Dito ainda de outro modo, o princípio em causa como que adere à tese de que a administração em regra não erra, não se engana e não pratica actos ilegais pelo que terá de ser o contribuinte a fazer prova do contrário em relação à bondade do acto administrativo.

Esta é uma definição que reconhecemos ser profundamente rudimentar mas o aludido princípio é, a nosso ver, isso mesmo, isto é, algo de rudimentar, caduco, ultrapassado e, actualmente, completamente ilegal.

Na nossa perspectiva qualquer alicerce que pudesse existir em relação à presunção de legalidade dos actos administrativos soçobraria/desmoronar-se-ia com a mera apreciação cuidada do quadro legal vigente. Com efeito nos termos do artigo 74º, nº 1 da Lei Geral Tributária (LGT) o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

Pelo que, sem grande esforço pensa-se, se pode concluir que, afora aqueles casos em que a lei estabelece determinadas presunções em que operará a regra prevista no artigo 350º, nº 1 do Código Civil (CC), se a administração pretende intervir correctivamente sobre os contribuintes terá de provar os factos que alega.

E isto assim é uma vez que actualmente existe uma situação de paridade entre os contribuintes e a administração, situação esta que não se compadece com situações de desigualdade ab initio que era aquilo que se teria de considerar como existente caso algum dos intervenientes no procedimento se visse protegido, na sua conduta, como estando a actuar em conformidade com a lei.

Como nos recorda LIMA GUERREIRO in Lei Geral Tributária Anotada, a pp. 328:

«Efectivamente, um sistema fiscal que faça assentar no contribuinte todo o ónus da prova da inexistência total ou parcial do facto tributário possibilita à administração tributária efectuar a liquidação sem que tenha previamente de formar uma inequívoca convicção de certeza da legalidade da liquidação, podendo bastar-se com meros indícios, o que alimenta a injustiça e desigualdade, dada a dificuldade que se reveste ordinariamente a prova de um facto negativo.» (o sublinhado é nosso).

Pelo que, e em suma quanto a este aspecto, é nosso profundo entendimento que a invocação de qualquer presunção de legalidade dos actos administrativos sempre seria uma interpretação, dos preceitos em relação aos quais a mesma fosse invocada, violadora do artigo 74º, nº 1 da LGT já para não dizer que a mesma seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado, como princípio geral, no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Visto isto e sendo esta a nossa posição não podemos deixar de colocar em causa o mérito jurídico do sufragado no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 22 de Março de 2004, tirado no processo nº 01006/03 in http://www.dgsi.pt quando nele se decidiu:

«I)- Gozando o acto tributário, como todo o acto administrativo em geral, da presunção de legalidade, tal conduz à inversão do ónus da prova, competindo ao impugnante provar os factos constitutivos da ilegalidade invocada como fundamento da pretendida anulação.

II)- Na fase contenciosa do processo tributário, tal norma dirige-se ao juiz que não poderá deixar de a aplicar até prova em contrário do contribuinte, e não autoriza a derrogar o princípio segundo o qual nas acções de anulação é ao autor que incumbe demonstrar os factos de que resulta o seu direito à anulação.

III)- Donde que no processo de impugnação judicial, o ónus da prova recaia sobre o impugnante, a quem cabe o encargo de provar a não existência dos pressupostos que justifiquem o acto tributário impugnado usando de todos os meios probatórios legalmente admissíveis, nomeadamente a prova testemunhal.

IV)- Não provando ele, na respectiva impugnação judicial, os factos que alegou em fundamentação do seu direito, o acto revelar-se-á legal e consequentemente deverá ser mantido na ordem jurídica.»

Atento tudo o que acima sustentamos, e como já vimos escrito por outros Autores em relação a outras situações, este é, do nosso ponto de vista, um acórdão que representa um claro retrocesso (evidentemente para pior) na genericamente boa jurisprudência nacional e que deve ser alvo da mais profunda preocupação para os operadores judiciários em particular e para os contribuintes em geral. Só não vamos ao ponto de invocar a profunda tristeza que nos pode causar, e supra referida, uma vez que a idade já não nos permite tal antes tendo nós que optar pelo rebate frontal de tais teses isto nos escritos, como o presente, que nos foi dada a possibilidade de elaborar.

E sendo esta a nossa posição verificamos, aqui com alguma satisfação, que a tese sustentada no acórdão sob anotação está longe de se poder ter como solidificada nos tribunais superiores.

Assim, em sentido completamente contrário e que merece o nosso abono também atento o caminho que supra trilhamos, se decidiu no acórdão do Tribunal Central Administrativo " 2ª Secção, de 28 de Janeiro de 2003, tirado no processo nº 3661/00 in http://www.impostos.net, da forma que segue:

«V - Os actos administrativos em geral, e também o acto tributário, não gozam da presunção de legalidade que, apesar de não se encontrar expressamente formulada em regra legal alguma, constituiu um princípio doutrinal e jurisprudencial que hoje, face à actual compreensão do princípio da legalidade administrativa, se tem por ultrapassado, surgindo a Administração, em termos de justiça administrativa e tributária, em situação de paridade com o particular.

VI - Assim, não faz sentido hoje invocar a presunção da legalidade do acto tributário na determinação do ónus da prova.

VII - De acordo com o entendimento actual do princípio da legalidade administrativa, incumbe à AT o ónus de prova da verificação dos requisitos legais das decisões positivas e desfavoráveis ao destinatário, como sejam a existência dos factos tributários e a respectiva quantificação (ressalvadas as excepções do art. 121.º, n.º 2, do CPT), isto quando o acto por ela praticado tem por fundamento a existência do facto tributário e a sua quantificação.»

A tudo isto que vimos de dizer, e a jeito de remate final, ainda podemos acrescentar um argumento de índole estatística que, julgamos, vai no sentido daquilo que sufragamos.

É ele o de que se os actos administrativos fossem merecedores de qualquer protecção por se presumirem conformes com a lei então a elevada taxa de anulação deste tipo de actos (em particular na esfera tributária que é do nosso particular conhecimento) nos tribunais tributários significaria que estes órgãos de soberania a quem incumbe julgar e aplicar o Direito andariam a decidir sistematicamente mal.

Ora pensa-se que ninguém com um mínimo de bom senso defenderá tal pelo que este nosso argumento final como que demonstra ad nutum o desacerto daqueles que defendem ainda existir actualmente vigente um princípio de presunção de legalidade dos actos administrativos e, em concreto, o desacerto do decidido no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 22 de Março de 2004, tirado no processo nº 01006/03.

FONTE: EXAME EXPRESSO
AUTOR: SÉRGIO TRIBUNA

0 comentários:

Enviar um comentário