Redução de Salários: Acórdão de 2002 considerou corte inconstitucional

Constitucionalistas dividem-se sobre eventual quebra do princípio da confiança.

Em 2002, um acórdão do Tribunal Constitucional considerou inconstitucional uma diminuição de salários operada por via do Orçamento do Estado (OE), por violação do princípio da confiança. A norma em causa, relativa ao OE de 1992, foi decidida com dez anos de atraso, por solicitação do procurador-geral da República, Cunha Rodrigues. À falta de jurisprudência sobre uma matéria por definição excepcional, é o acórdão mais relevante para debater a legitimidade do corte salarial que o governo propõe para a Função Pública. Mas será a situação transponível para a actualidade?

A resposta, dizem a uma só voz constitucionalistas ouvidos pelo i, nunca poderá ser linear. "No caso actual, naturalmente se for chamado a pronunciar-se o Tribunal Constitucional irá recordar esse acórdão. Mas pode formar uma decisão diferente, tendo em conta a conjuntura actual", explica Tiago Duarte, professor de direito constitucional.

O acórdão em causa (nº 141/2002) debruçava-se sobre o regime que estabeleceu limites salariais tendo por referência o vencimento do Presidente da República e que acabou por representar um corte para membros de gabinetes de órgãos de soberania, designadamente na Assembleia da República. A decisão foi, portanto, "motivada por razões meramente políticas", recorda Tiago Duarte. Não havia um interesse público previamente invocado que justificasse a diminuição.

O mesmo acórdão afirma não haver um princípio geral e abstracto que proíba a diminuição de salários na função pública. O que não invalida que, em concreto, uma redução possa ser inconstitucional, se violar o princípio da confiança. Tudo depende da situação em concreto, apreciada com base no chamado princípio da proporcionalidade, explica o constitucionalista Bacelar de Vasconcelos. Ou seja, será necessário avaliar se o interesse público justifica a contracção de direitos dos trabalhadores. O que implica ponderar se as medidas são indispensáveis e se são proporcionais atendendo ao dano que vão provocar. "Perante este quadro podemos chegar a respostas diferentes", sublinha Bacelar de Vasconcelos. "Não é algo matemático."

Balanças diferentes. Para o constitucionalista Rui Medeiros, é "um erro" que a Constituição limite a liberdade de governação em domínios relevantes. Pegando nos dois pratos da balança, gravidade do que se impõe aos trabalhadores versus importância de salvaguarda das contas públicas, admite justificar-se que a Assembleia da República adopte medidas pesadas. Mas sublinha que é uma decisão daquele órgão - que ainda irá pronunciar-se - e não do governo.

"Tenho dificuldade em considerar inconstitucional e matarmos o país em nome da manutenção absoluta de direitos", explica Rui Medeiros. Recorda que em 1983 o Tribunal Constitucional admitiu a retroactividade de um imposto excepcional e, mais recentemente, aceitou a reforma da Segurança Social, que também quebrou expectativas e implicou efeitos retroactivos.

Diferente é a opinião de Paulo Veiga e Moura, especialista em direito administrativo. "Pessoalmente, considero a redução de salários de constitucionalidade duvidosa", afirma. Embora sublinhe a complexidade e subjectividade da questão, considera serem violados não só o princípio da protecção da confiança, como o princípio da intangibilidade da retribuição.

Eurodeputado eleito pelo PS, o constitucionalista Vital Moreira é parco em comentários. "Não tenho essa ideia", responde quando confrontado com a dúvida sobre eventual violação do princípio da confiança.

Além de ser difícil antecipar uma eventual decisão do Tribunal Constitucional, igualmente nebulosa é a questão da eficácia da decisão. No caso votado em 2002 - por conselheiros como Bravo Serra, actual vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, e Maria Fernanda Palma, mulher do ministro Rui Pereira - o tribunal não estabeleceu qualquer limitação à eficácia. Ou seja, perante a decisão o Estado ficou obrigado a devolver as remunerações em falta às pessoas afectadas. Como houve um lapso de dez anos entre a aprovação da norma e a sua declaração de inconstitucionalidade, não foi possível confirmar se essa devolução foi feita por iniciativa do Estado.

Mas a Constituição permite, no artigo 282º, que seja excluída a retroactividade da decisão, designadamente por "interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado". Admitindo que, chamado a pronunciar-se, o Tribunal Constitucional chumbe a eventual redução de salários, não significa que seja devolvido aos funcionários o dinheiro entretanto retido. Mais uma vez, tudo depende do entendimento do tribunal.


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FONTE: JORNAL i
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