Dúvidas sobre recurso às cláusulas antiabuso

Não é óbvio, mas é possível. É assim que um dos fiscalistas consultados pelo PÚBLICO enquadra a questão do recurso às cláusulas gerais antiabuso da Lei Geral Tributária (LGT) para proceder à tributação dos dividendos, mesmo que as empresas optem por os distribuir ainda este ano.

Nem sempre assim foi, mas, depois das alterações introduzidas no final da década passada, a lei passou a considerar como ineficazes as actuações dos contribuintes tendentes a diminuir ou elidir obrigações fiscais, isto independentemente do carácter legal desses actos. "A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes", assim dita o art.º 38.º da LGT, que igualmente define os respectivos pressupostos: "São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas, à redução, eliminação ou deferimento temporal de impostos que seriam devidos (...) ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas".

Compete, nestes casos, à administração fiscal proceder à requalificação do facto que originou a subtracção fiscal, instaurando o respectivo procedimento de cobrança, mas as opiniões dividem-se quanto ao seu enquadramento no caso da antecipação dos dividendos.

"Sim. É para isso que existem as cláusulas gerais antifraude", diz o anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Carlos Lobo; "Não. Aplicam-se apenas no caso de utilização enviesada de fórmulas jurídicas", garante o fiscalista Gonçalo Leite de Campos, da sociedade de advogados Sérvulo e Associados. Mais cauteloso, António Carlos Santos, também ele ex-governante na área fiscal (nos governos de António Guterres), diz ter dúvidas quanto ao enquadramento do pagamento antecipado dos dividendos na cláusula antifraude. "Mostra é que a ética e a responsabilidade social das empresas é uma treta", censura, defendendo contudo que a administração fiscal só deverá avançar para o recurso àquelas cláusulas se tiver fundadas esperanças de que os tribunais lhe possam vir a da razão. "E neste caso tenho sérias dúvidas", confessa.

O ex-governante argumenta que ainda há pouco tempo os responsáveis pelo fisco elencaram as 13 práticas que consideram como planeamento fiscal abusivo, e delas não nada consta que possa estar relacionado com a questão dos dividendos.

Por outro lado, diz que se a ideia era mesmo a de tributar os dividendos, era muito fácil ter reportado a obrigação a meados deste ano, "tal como foi feito com outros impostos". E, tendo em conta a decisão das empresas, deixa a dúvida: "Será que não se quis que fosse mesmo assim?"

Numa coisa os dois ex-governantes coincidem: é necessário conhecer as decisões concretas das empresas para se poder avaliar se tal pode ou não configurar um mecanismo artificioso destinado a elidir a norma fiscal.

Já Leite de Campos não tem dúvida quanto à não aplicação daquele mecanismo legal. A decisão das empresas mais não é que uma "técnica de boa gestão", tal como é exigido pelos accionistas. "Não existe abuso de formas jurídicas", garante, aduzindo também o argumento temporal. "Como é que a decisão das empresas pode estar a violar uma norma, se ela nem sequer existe ainda? O que há é apenas um propósito manifestado pelo Governo e os contribuintes não ficam automaticamente sujeitos a intenções."

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FONTE: PUBLICO
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